O pensamento ecologizado
Esse texto é trechos do livro Os Problemas do Fim de Século de Edgar Morin, q foi publicado na década de 90.
A consciência ecológica
Edgar Morin
A ecologia é uma disciplina científica cuja criação se deve ao biólogo alemão Haeckel em fins do século XIX; no ano de 1935 o botânico inglês Tansley concebeu a noção central que distinguiu o tipo de objeto desta ciência dos das outras disciplinas científicas: o ecossistema. Em 1969 operou-se na Califórnia uma junção entre a ecologia científica e a tomada de consciência de degradações do meio natural, não só locais (lagos, rios, cidades) mas agora também globais (oceanos, planeta), que afetam os alimentos, os recursos, a saúde, o psiquismo dos próprios seres humanos. Houve assim uma passagem da ciência ecológica à consciência ecológica.
Além disso, fez-se a junção entre a consciência ecológica e uma versão moderna do sentimento romântico da natureza que se desenvolvera, principalmente no seio da juventude, ao longo dos anos 60. Este sentimento romântico encontrou na mensagem ecológica a sua justificação racional. Até então, qualquer «regresso à natureza» fora encarado na história ocidental moderna como irracional, utópico, em contradição com as evoluções «progressivas». No fundo, a aspiração à natureza não exprime somente o mito de um passado natural perdido; ela também exprime as necessidades, hic et nunc, dos seres que se sentem molestados, sufocados, oprimidos num mundo artificial e abstrato. A reivindicação da natureza é uma das reivindicações mais pessoais e mais profundas, que nasce e se desenvolve nos meios urbanos cada vez mais industrializados, tecnicizados, burocratizados, cronometrados.
Nos anos 1969-1972, a consciência ecológica suscita uma profecia com tons de apocalipse. Ela anuncia que o crescimento industrial conduz a um desastre irreversível não só para o conjunto do meio natural, mas também para a humanidade. Devemos considerar histórico o ano de 1972, o do relatório Meadows encomendado pelo Clube de Roma e que situa o problema na sua dimensão planetária. É verdade que os seus métodos de cálculo eram simplistas, mas o intento do relatório Meadows constituía um primeiro esforço para apreciar o conjunto dos devires humano e biológico à escala planetária. De igual modo, os primeiros mapas geográficos estabelecidos na Idade Média pelos governadores árabes apresentavam enormes erros na situação e dimensão dos continentes, mas constituíam o primeiro esforço para conceber o mundo.
A profecia ecologista dos anos 70 autodestruiu-se parcialmente: a difusão bastante rápida da consciência das poluições, degradações locais ou provinciais desencadeou a aplicação de dispositivos jurídicos e técnicos que de certo modo atenuaram e abrandaram o processo cataclísmico. Mas, justamente, uma boa profecia suscita as reações e lutas que evitam a catástrofe que ela prediz. Contudo, quinze anos depois, diversos acidentes espetaculares, entre os quais Seveso e Chernobyl, vieram confirmá-la e o grande alerta sobre a biosfera é hoje geral.
A partir de agora, com o recuo, podemos ver melhor o que havia de secundário e de essencial na tomada de consciência ecológica. O que era secundário, e que alguns tomaram pelo principal, era o alerta energético. Muitos dos espíritos da primeira vaga ecológica julgaram que seriam dilapidados muito rapidamente os recursos energéticos do globo. Na realidade, as potencialidades ilimitadas de energia nuclear e de energia solar indicam que a ameaça fundamental não é a penúria energética. O segundo erro era o de julgar que a natureza exigia uma espécie de equilíbrio ideal estático que devia ser respeitado ou restabelecido. Ignorava-se que os ecossistemas e a biosfera têm uma história, feita de rupturas de equilíbrios e de reequilibrações, de desorganizações e de reorganizações.
Mas então, o que havia de importante na consciência ecológica? Era — como vamos ver — 1) a reintegração do nosso meio ambiente na nossa consciência antropológica e social, 2) a ressurreição ecossistêmica da ideia de Natureza, 3) a achega decisiva da biosfera para a nossa consciência planetária.
Voltemos à noção de ecossistema. O ecossistema significa que, num dado meio, as instâncias geológicas, geográficas, físicas, climatológicas (biótopo) e os seres vivos de todas as espécies, unicelulares, bactérias, vegetais, animais (biocenose), inter-retro-agem uns com os outros para gerar e regenerar incessantemente um sistema organizador ou ecossistema produzido por estas mesmas inter-retro-ações. Por outras palavras, as interações entre os seres vivos são não só de devoração, de conflito, de competição, de concorrência, de degradação e de depredação, mas também de interdependências, solidariedades, complementar idades. O ecossistema se autoproduz, se auto-regula e se autoorganiza de modo tanto mais notável quanto não tem nenhum centro de controle, nenhuma cabeça reguladora, nenhum programa genético. O seu processo de auto-regulação integra a morte na vida, a vida na morte. É o famoso ciclo trófico no qual efetivamente a morte e a decomposição dos grandes predadores alimentam não só animais comedores de cadáveres, não só uma multidão de insetos necrófagos, mas também bactérias; estas vão fertilizar os solos; os sais minerais provenientes das decomposições vão alimentar as plantas pelas raízes; estas mesmas plantas vão alimentar animais vegetarianos, os quais vão alimentar animais carnívoros, etc. Assim, a vida e a morte sustentam-se uma à outra segundo a fórmula de Heraclito: «Viver de morte, morrer de vida.» Há motivos para nos maravilharmos com esta espantosa organização espontânea, mas convém igualmente não a idealizar, pois é a morte que regula todos os excessos de nascimentos e todas as insuficiências de comida. A Mãe Natureza é ao mesmo tempo uma Madrasta. (…)
Não faz muito tempo, todas as ciências recortavam arbitrariamente o seu objeto no tecido complexo dos fenômenos. A ecologia é a primeira que trata do sistema global formado por constituintes físicos, botânicos, sociológicos, microbianos, os quais se inscrevem cada qual numa disciplina especializada. O conhecimento ecológico requer uma policompetência nestes diferentes domínios e sobretudo uma apreensão das interações e da sua natureza sistêmica. Os êxitos da ciência ecológica nos mostram que, contrariamente ao dogma da hiperespecialização, há um conhecimento organizacional global que é o único capaz de articular as competências especializadas para compreender as realidades complexas. Além disso, o diagnóstico de um mal ecológico exige não uma ação destruidora sobre um alvo, mas uma ação reguladora sobre uma interação; assim, intervém-se ecologicamente contra um patogênico, não pelo emprego maciço de pesticidas que, para destruir uma espécie julgada nefasta, vão destruir a maioria das outras espécies, mas pela introdução no meio de uma espécie antagónica à espécie perigosa, o que vai permitir regular o ecossistema ameaçado.
Estamos então na presença de uma ciência de tipo novo que incide sobre um sistema complexo, recorre simultaneamente às interações particulares e ao conjunto global, mas, além disso, ressuscita o diálogo e o confronto entre os homens e a natureza, e permite as intervenções mutuamente proveitosas a uns e à outra.
O pensamento ecologizado
Examinemos agora o aspecto paradigmático do pensamento ecologizado. Dou à palavra «paradigma» o seguinte sentido: a relação lógica entre os conceitos mestres que comandam todas as teorias e discursos que deles dependem. Assim, o grande paradigma da cultura ocidental desde o século XVII ao século XX separa o sujeito e o objeto, sendo o primeiro remetido para a filosofia e o segundo para a ciência, e, no âmbito deste paradigma, tudo o que é espírito e liberdade dimana da filosofia, tudo o que é material e determinista dimana da ciência. É neste mesmo âmbito que há a separação entre a noção de autonomia e a de dependência. A autonomia não tem a mínima validade no âmbito do determinismo científico, e, no âmbito filosófico, ela repele a ideia de dependência. Ora, o pensamento ecologizado deve necessariamente romper este paradigma e referir-se a um paradigma complexo onde a autonomia do vivo, concebido como ser auto-eco-organizador, é inseparável da sua dependência.
O organismo de um ser vivo (auto-eco-organizador) trabalha sem descanso, de modo que degrada a sua energia para se automanter; ele precisa de renovar esta alimentando-se de energia fresca no seu meio ambiente, e, por isso mesmo, depende do seu meio ambiente. Assim, nós necessitamos da dependência ecológica para podermos assegurar a nossa independência. A relação ecológica nos leva muito rapidamente a uma idéia aparentemente paradoxal: é a de que, para ser independente, é preciso ser dependente; quanto mais se quer ganhar a sua independência, mais se tem de pagá-la com dependência. Logo, a nossa autonomia material e espiritual de seres humanos depende não só de alimentos materiais, mas também de alimentos culturais, de uma linguagem, de um saber, de mil coisas técnicas e sociais. Quanto mais a nossa cultura for capaz de nos permitir o conhecimento de culturas alheias e de culturas passadas, mais o nosso espírito terá hipóteses de desenvolver a sua autonomia. (…)
É neste ponto que devemos abandonar totalmente a concepção insular do homem. Não somos extravivos, extra-animais, extramamíferos, extraprimatas. Não estamos desligados dos primatas, nos tornamos superprimatas ao desenvolver qualidades que eram esporádicas ou ainda incipientes nos símios, como o bipedismo, a caça e o emprego dos utensílios. Não estamos desligados dos mamíferos, somos supermamíferos marcados para todo o sempre pela nossa relação íntima, quente, intensa de ser inacabado, não só à nascença, mas até à morte, com a nossa mãe, bem como pela relação entre os irmãos e irmãs numa ninhada, fontes do amor, da afeição, da ternura, da fraternidade humanas. Somos supermamíferos, supervertebrados, superanimais, supervivos. Esta ideia fundamental significa do mesmo passo que a organização biológica, animal, mamífera, etc., se encontra não só na natureza fora de nós, mas também na nossa natureza, dentro de nós.
Como todos os seres vivos, somos igualmente seres físicos. Somos constituídos por macromoléculas complexas que se formaram numa época pré-biótica da terra: os átomos de carbono destas moléculas, necessários à vida, formaram-se graças ao encontro de núcleos de hélio no cadinho de sóis anteriores ao nosso. Enfim, todas as partículas que se agregaram em hélio datam dos primeiros segundos do universo. Assim, não estamos apenas num mundo físico: este mundo físico, na sua organização físico-química, está constitutivamente em nós. Eis portanto um princípio fundamental do pensamento ecologizado: não só não se pode separar um ser autônomo (Autos) do seu habitat cosmo-físico e biológico (Oikos), como ainda se deve pensar que Oikos está em Autos sem que no entanto Autos deixe de ser autônomo, e, no que toca ao homem, este é relativamente estranho num mundo que é não obstante o seu. De fato, somos integralmente filhos do cosmos. Mas, pela evolução, pelo desenvolvimento particular do nosso cérebro, pela linguagem, pela cultura, pela sociedade, nos tornamos estranhos ao cosmos, nos distanciamos deste cosmos e nos marginalizamos dele. (…)
Chegamos ao momento histórico em que o problema ecológico nos pede que tomemos consciência quer da nossa relação fundamental com o cosmos, quer da nossa estranheza. Toda a história da humanidade é uma história de interação entre a biosfera e o homem. O processo foi intensificado com o desenvolvimento da agricultura, que modificou profundamente o meio natural. Foi criada cada vez mais uma espécie de dialógica (relação a um tempo complementar e antagônica) entre a esfera antropo-social e a biosfera. O homem deve deixar de agir como um Gengis Khan dos arrabaldes solares. Deve se considerar não como o pastor da vida, mas como o co-piloto da natureza. A consciência ecológica requer daqui em diante dupla pilotagem: uma, profunda, que vem de todas as fontes inconscientes da vida e do homem, e outra que é a da nossa inteligência consciente.
Primeira publicação deste texto em Le Monde Diplomatique de Outubro de 1989 (N. do E. francês).
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